segunda-feira, março 17, 2008

Delícia Vermelha

Podia deitar-se com quem quer que fosse, tocar o que quer que fosse, mas seu coração permanecia virgem.



Anna levantou-se da cama e, quando o sol arranhou as paredes do quarto, envergonhou-se, vestiu-se, deixou dormir mais um dos pobres garotos que nada tinham a ver com a sua busca. Mas antes, como castigo, fechou as cortinas e deixou o sol ser sozinho.



Não lembrava onde fora a farra da noite anterior, nem lembrava como parara naquela cama pequena: a bebida não era mais agente causador; era agente esquece-dor.



O cheiro forte de maçãs e patchuli fazia-a indagar-se coisas absurdas. Afinal, quando foi que deixara de se sentir a princesinha do papai?



As unhas compridas, vermelhas, arranhavam a carne enquanto esperava o táxi que não chamara. Quando os minutos tornaram-se cansativos, recolheu do chão o embrulho e caminhou ao mercado.



Porque a chuva fazia com que se sentisse úmida, silenciosa;



fatal.



Os olhos de gueixa, o cabelo comprido, o corpo calculado: ela inteira caberia nos sonhos de qualquer um, mas não, não queria caber,



queria ser.



Atravessou a rua e resolveu fazer compras no mercado sempre tão caro, sempre tão perto, e nem percebeu que, enquanto esperava os carros passarem, um pretérito alheio tocou seus olhos. Anna era cor, dor e insanidade; aos olhos dele, que a observava da magrela azul todo dia quando ia trabalhar, Anna era toda vermelho-vivo-pulsante, como a boca que ela pintava.


era perfeita.




E Anna vivia a angústia de não saber como se sentir. Servia café em xícara grande, toda manhã, deixando sobrar sempre a mesma quantidade.




Anna, quando você for atravessar a rua, olhe para os dois lados. Mesmo se for mão única.


(fim da primeira parte).



me deixa tocar você sentir você beijar você cheirar você em cada canto seu até que não tenha mais cheiro mais canto mais você mais nada.




segunda-feira, março 10, 2008

Ímpeto lascivo.

Como não se conta um conto.


Amizade escarnada no desejo?
Não saberia. Pagou a passagem, estralou os dedos (menos o dedão esquerdo, era sempre tão complicado estralá-lo!) e pensou:
"Onde parei?". A falta de respostas foi a única coisa que lhe surgiu à mente.
Por que era assim difícil ser emocionalmente estável, financeiramente satisfeito e intelectualmente respeitável?
A incapacidade o oprimia; a fatalidade decorrente o excitava.
Coisas da vida.
O ônibus chegou, desembocou desconhecidos feios, sujos e mal humorados, fechou as portas e ele.
continuou.
ali.
(é preciso muita calma e paciência para suportar uma existência descoberta antes da hora).
Surpreendia-se com a força que aquele corpo miúdo, estreito, tomava seus pensamentos. Não era preciso metafísica dos tubos para entender que o que sentia era quase, quase divino.

Sempre, sempre há tempo para dizer que gosta, para dizer que se importa, e o tempo se expremia entre as mãos, pernas e sexos naquele ônibus apertado.

Às vezes vinte anos passam mais rápido que uma madrugada no hospital.

A mãe dissera que o tempo lhe ensinaria a ser homem; que carregaria na pupila do olho uma menina, e que ela o ensinaria a não ser assim cruel.
Mas não ensinou e o que lhe favorecia era a sem-vergonhice de nada ter; assim, nada tendo a perder.

sábado, março 08, 2008

Pro inferno com as rosas

Não é porque não as ganhei que não sinto orgulho ao vê-las em mãos alheias.
Não é porque eu ouvi a coisa mais rídicula que eu não darei uma nova chance a essa voz.
Não é por falta de gasolina, não é só porque é Carolina.

Feliz dia das mulheres pra moça que recolhe papelão, pra vendedora de bijus na rua, pra moça que sentou no lugar que eu estava reservando.

Feliz mulher, dia das vidas nossas que não aparece em todo calendário.

Agora eu vou na farmácia comprar um anti-constipador mental, e ver se ganho uma rosa.

Rosas para uds.

segunda-feira, março 03, 2008

a carne / é fraca.




O ácido queima a carne

a carne ofende a raça

a raça não tem mais nome.


O fim não tem mais ponto

a guerra não tem mais como

e o menino

virou homem.


Por estatística,

já cresceu.

Na metafísica,

desfaleceu.


A roupa que cobre:

tênue linha entre desespero

e a ilusão de viver.


Ser humano virou meio,

Metade mesmo-

quando descobriu a bomba

a cocaína

e as palavras usadas

como lanças envenenadas na ponta.


O movimento ameaça, mas, veja:

é só um menino

E o menino queria ser gente.


Atravessou a rua,
pisou na lua,

chorou a inexprimível dor

e no canto escuro deitou-se

até secar

oxidar.


Fez-se esperar algumas horas.

O resto

era silêncio

e história.


Porque a dor da guerra me queima o estômago.

Hai un momento, dio?

Coloquei a mão no peito, extasiada pela tensão e tesão do momento, e disse de um jeito que não poderia ser outro:
-Filho de uma curca.
Ao que ele, na sua superioridade absoluta e inabalável pompa, baixou a cabeça, concordou e ressaltou:
-Muito curca.
Nossos olhares limitarem-se à vergonha de sermos quem éramos, no lugar onde estávamos, nas condições inquestionáveis: Ele não me responderia o que eu mais queria saber. E eu, ah, eu nunca me dobraria por tamanha situação inodora!
E eu era jovem. Sim, era jovem.. foi apenas ontem e anos se passaram desde que eu tombei com deus nas escadas porcas da praça. Ele e seu olhar fugidio. Maldito olhar! Sabia que eu iria exaurí-lo, sabia que minhas dúvidas não eram poucas. E eu disse
-Vem que te pago alguma coisa, bato uma foto tua no Alemão, te viro do avesso e descubro teus motivos.
E ele cedo disse que o mundo é dos espertos, virou as costas e continuou vendendo seus trecos artesanais para os alcoolizados e solitários: "Compra algo pra enfeitar o dedo da tua menininha".
E eu, joguete do destino, fiquei com uma flor na mão, um brinco novo na orelha e um pedaço faltando nesse espaço, há tempos tão vão e tão vã e tão cão: ...
Eu tapei essa ausência com durepox, deixando o cinza grudento evidenciar essa falta absurda de um desconhecido esperado. Eu queria é que ele tivesse aceitado meu convite, bebesse comigo e dissesse por que é sempre um diferente tão igual, eu queria que ele me desse UM motivo para acreditá-lo.

Mas não o fez.
Afivelou as sandálias,
enrolou a ponta dos cabelos com o indicador,
bocejou e despediu-se.
Virou-se pra mim e, numa tentativa frustrada, arrematou:
-Viva o lado Coca-Cola da vida.


#
Eu estaria aqui de qualquer jeito, mas não é por isso. Eu quero uma felicidade que não precise ser colorida, mas que a seja, por pura sinestesia!
#